sexta-feira, 18 de março de 2011

A DEFINIÇÃO DA ARTE E O OBJECTO ARTÍSTICO



   Existe cada vez mais uma enorme dificuldade em definir aquilo que é ou não é «arte». As práticas e objectos a que se pode dar a denominação de obra de arte são em tal número e diversidade que é difícil, senão impossível, proceder a essa classificação e encontrarmos um consenso e critérios que a definam.
   Este consenso, no qual se irá fundamentar a estética da modernidade, é difícil atingir e varia com a época histórica, a sociedade e a passagem do tempo. Do ponto de vista sociológico é considerado como «arte» aquele objecto que uma comunidade reconhece como tal, o que é manifestamente insuficiente como critério de classificação por se poder questionar com facilidade. Porquê aquele objecto e não outro?
   Do ponto de vista histórico, o consenso atinge-se mais facilmente quando se analisa uma obra que não é nossa contemporânea. Existe sempre menos consenso (ou não existe) acerca das obras hodiernas ou recentes. O consenso aumenta portanto com a distância temporal, embora cada época histórica tenha um ponto de vista diferente, que pode ser sociológico, filosófico ou ideológico. Para Marx a ideologia filtra os conhecimentos que temos acerca do mundo, tornando-se num mecanismo que nos mostra dum modo dirigido e alienado aquilo que nos rodeia. Do ponto de vista filosófico teria de se partir de um modelo de comparação tomado como «arte», ou escolher um modelo (de entre muitos) que reunisse as características essenciais. O problema do consenso é posto também em relação ao juízo de gosto que é discutível. Kant na Crítica da Faculdade de Julgar coloca o problema da relação entre o sujeito e o objecto, dizendo que ao julgarmos esse objecto “belo”, estamos a chamar “belo” à sua representação e às memórias que temos doutros objectos e não ao próprio objecto.
   O conceito de «arte» a sua fruição e juízo, assim como as oscilações do gosto que lhes estão associados traduzem-se em diversos tipos de emoções estéticas e adquirem vários significados e valores ao longo do tempo conforme a época e a evolução das sociedades e cultura em que são produzidos.
   A obra de arte evoluiu com o tempo e com as mudanças religiosas, sociais e políticas. De início considerado como objecto ritual e mágico e depois objecto de culto, «sagrado» inacessível e afastado do homem, que servia de veículo de representação às ideias e manifestações espirituais das diversas religiões, passou mais tarde a objecto «belo», mais acessível, acerca do qual se emite um «juízo» e de cuja fruição através da percepção (e simultaneamente da dissolução da percepção) se obtém um «prazer».
Para José Gil “ a percepção da obra de arte não é um misto de prazer e de cognição nem um acto que visa um fenómeno particular visível, descrito segundo os conceitos clássicos da teoria do conhecimento. É um tipo de experiência caracterizada pela dissolução da percepção. O espectador vê primeiro como sujeito percepcionante e depois dum modo que o faz participar na obra.”
   A origem da «aura» da obra de arte está, segundo Walter Benjamin, no carácter de inacessibilidade do objecto de culto, «sagrado». Com a substituição dos valores culturais a «aura» passa a ser diferente através do culto da beleza e da autenticidade. A função mais artística da obra é assumida pela maior proximidade com o público. A obra de arte deixa de ser venerada como objecto sagrado, distante e absoluto e submete à nossa apreciação e análise do pensamento aquilo que é representado, e a função e importância que tem para nós.
   Para Kant, o juízo estético não é legislativo, não deve ser feito fora da presença do objecto, deve ser desinteressado e feito em liberdade.
   A obra de arte desperta em nós não só um prazer imediato mas um julgamento acerca da «ideia» que lhe está subjacente, do seu conteúdo, dos meios expressivos utilizados, e da adequação recíproca destes elementos.
   Com o advento da reprodução mecânica que revolucionou os meios de produção dos objectos e a invenção da fotografia e do cinema, a «aura» que envolvia o objecto artístico perdeu-se com a anulação da distância entre este e o sujeito. A partir daí o sujeito participa do objecto que lhe é cada vez mais acessível, pela maior proximidade e democraticidade do consumo.
    O conceito de eternidade intemporal de obra de arte, foi posto de parte por Umberto Eco, que procurou articular dois conceitos: a estética e a sociologia, provando que por definição, uma obra de arte tem de ser um sistema aberto próximo da ideia de sistema aberto numa não determinação. Assim, a obra de arte, tem em si, como qualquer sistema, a característica de abertura, uma troca de informação entre a organicidade do sistema e tudo o que a rodeia (o seu ecossistema). É posta a tónica na leitura ou fruição duma obra, como acto de seriação constante, entra em fechamento, em entropia e morre. A ideia de obra como objecto que não tenha trocas com o ecossistema é contrária à ideia de obra de arte pois os fluxos sempre possíveis de serem dinamizados fazem com que a obra viva eternamente. Este fechamento e abertura coloca implicitamente a ideia de ordem e desordem, sendo qualquer artista um provocador de roturas e estas a emergência do novo.
   Segundo Umberto Eco, a arte pode provocar desordem no interior do paradigma ou na emergência do novo. A ordem é o problema da metonímia, o discurso da continuidade, fechado. Um discurso aberto, que é o discurso da obra de arte, é um discurso descontínuo, metafórico e altamente ambíguo. É a própria sociedade na sua dinâmica que instaura paradigmas e consubstancia uma estética que define uma obra como arte.   
   Os vários tipos de leitura/fruição da obra desencadeiam processos de categorização (actos discriminatórios) na forma como se vai construindo uma obra de arte. Estas fruições têm a ver com as várias culturas, hábitos, crenças, tradições, conhecimentos e cognições que os fruidores têm em cada momento de fruição. Quantas mais leituras, mais perspectivas, novas relações, nenhuma sendo conclusiva ou exclusiva mas complementares.
   Considerando as características dos diversos fruidores e a sua quantidade, haverá sempre novas perspectivas e consequentemente novos conteúdos informativos.
   O objecto de arte segundo Umberto Eco é altamente informativo para além de comunicativo. Cada leitura cria uma tensão dinâmica entre o máximo de compreensão necessária para acedermos a essa obra. A sociedade necessita de um certo tempo para aprender e descodificar a emergência do “novo”.
“ O objecto cultural em qualquer das suas modalidades, é sempre mais instável e polémico do que parece, porque nele se intersectam múltiplas percepções e assim nele se realiza a própria interacção cruzada entre quem o propõe, quem o avalia, quem o procura: a percepção do criador sobre a sua obra, percepção dos pares onde primeiro circula e dos que a julgam, percepção dos públicos que com ela se enfrentam. Obra aberta portanto, de fechamento partilhado com cada um dos interlocutores a acabando por si, quantas vezes, no limiar de horizontes incoincidentes. E obra aberta ainda na medida em que a incessante reconstrução dos modos de ver, ouvir, entender e sentir faz parte das oscilações históricas do gosto, tornando frágil, precário e provisório todo o tipo de fechamento.” (Idalina Conde)




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