quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

ESTÉTICA - Desmaterialização da obra de Arte


SER OU NÃO SER
OBRA DE ARTE


   A ideia de desmaterialização associa-se à ideia de “perca”. Esta ideia tornou-se fundamental no séc. XX e nos últimos 40 anos. A ideia de “perca” é a ideia fundamental na concepção do processo artístico. Consideram-se duas formas de procedimento do acto criativo. Por um lado o processo criativo como adição ou acumulação em relação a outra concepção que se começa a esboçar nos primeiros anos da década de 60 e que associa o acto criativo, não a um processo de acumulação ou aditivo, mas a um processo subtrativo ou deperca”.Quando utilizamos esta palavra (perca) é inevitável associarmos a esta ideia uma conotação psicanalítica , no sentido em que o processo criativo se baseia mais sobre uma falta ou ausência do que  sobre a acumulação da presença física dum objecto numa sala, ou fazer com que o objecto seja o resultado duma acumulação.
   Esta perca é uma perca da materialidade do objecto. Há menos objectos materiais nas exposições, menos matéria, e a matéria que existe é mais sintética e menos analiticamente acumulada. Esta “perca” ou ausência surge em favor duma crescente importância duma figura de estilo, dum recurso que é o “conceito”.
   Por “conceito” podemos nesta fase genericamente entender “sujeito. Quer dizer, há uma certa materialidade em função dum crescendo da importância da “ideia”. Não propriamente da “ideia”, mas duma “ideia da ideia”.
   A esta “ideia da ideia” um grande número de artistas e teóricos dos anos 60 chamou “conceito”.
   O “conceito” não surge ou não é o lado mental do processo artístico e a matéria não é o lado físico do processo artístico. Na realidade os artistas quando falam do seu trabalho não fazem intuitivamente uma divisão entre o que têm de dizer e aquilo que fazem. É frequente os artistas, ao falarem do seu trabalho, usarem expressões como: “no plano das ideias”... “no plano do imaginário”... “em termos conceptuais este trabalho refere-se”... (“a isto ou aquilo”) .
   Quer dizer que está enraizado no nosso vocabulário, na nossa maneira de falar, uma forma cartesiana de nos ligarmos com as Obras de Arte. Olhamo-las como se elas fossem pessoas, e depois aplicamos-lhes a divisão entre a “rés cogitans” e a “rés extensa” que Descartes estabeleceu para melhor compreender o mundo. Esta forma de nos relacionarmos com as obras de arte é extremamente redutora, porque a maior parte da “rés cogitans” da Obra de Arte não vive noutro lado senão na “rés extensa”. Isto é, não há ideia duma Obra que não se manifeste numa forma qualquer de existência.
Marcel Duchamp - Escorredor de garrafas
   A “perca” sente-se em relação à ausência ou diminuição da materialidade, logo, em função da importância da “ideia” em detrimento da matéria. Essa “ideia” manifesta-se pela ausência de narração ou falência do processo narrativo, e ausência de história. Já não basta aproveitar a grande herança do modernismo que tinha sido tomar a história como sintoma ou indício da grande complexidade do “ser” em geral. A versão que temos mais acabada deste grande eixo de preocupação moderna podemos encontrá-la em James Joyce por um lado e por outro em Marcel Duchamp .
   Todas as micro-narrativas que M.Duchamp constrói são uma espécie de véu levantado sobre a grande complexidade que é o “ser”.
   No mesmo sentido, segundo a  concepção de Joyce, da narração de um período absolutamente concentrado da história da vida de alguém pode-se intuir da grande complexidade que é qualquer tipo de relação seja ela qual for.
   Nos anos 60, a maior parte dos artistas e criadores não estão preocupados em sinalizar essa complexidade, estão preocupados em prescindir da narratividade como elemento central de qualquer processo criativo. 
Sol Lewit
Sol Le Wit fala de artistas conceptuais com “C” maiúsculo e artistas conceptuais com “c” minúsculo. Com “C” maiúsculo são os que prescindem de qualquer actividade física na produção do seu trabalho. Artistas conceptuais com “c” minúsculo, que é o caso dele próprio,  não prescindem de continuar a produzir desenhos e esculturas como suporte do seu processo criativo  continuando a ser conceptuais. 
Donald Judd
Um bom exemplo de artista conceptual com "C" maiúsculo e que a dado momento da sua carreira prescinde do contacto directo na produção das obras que idealiza é Donald Judd cujas peças passam a ser  inteiramente produzidas em fábricas a partir dos seus projectos. A ele Interessa-lhe a tridimensionalidade da escultura e a relação que os objectos estabelecem com o espaço e com o solo. Nos seus trabalhos minimalistas, que resultam de uma radical simplificação das formas, dos materiais e das cores, o artista pretende acentuar as qualidades físicas e plásticas, sem imitar ou expressar nada para além da realidade física e sensível das formas. Produziu séries de esculturas repetitivas em forma de caixas rectangulares de contraplacado, madeira , alumínio ou ferro. Estas "Pilhas" eram colocadas em paredes ou no chão. Produziu também peças de mobiliário despojadas de decoração e reduzidas à expressão formal mais simples. 
Donald Judd
   O termo “conceptual” tem portanto valores muito diferentes para diferentes criadores ao longo dos anos 60, mas temos como instancia mais globalizante esta acepção da importância da ideia como rescisão com a ideia de narrativa. Nos anos 60 encontramo-nos sob a égide da abstracção, tomada no seu sentido radical. Assim surgem uma série de proposições e micro tendências chamadas “abstraccionismo radical”. Este abstraccionismo radical quer prescindir de qualquer vertente significante ou seja esta obra “não quer dizer” , “não significa”, ela é um campo de “possibilidade pura” , o campo total de possibilidade”. Esta rescisão com o elo que sempre ligou o criador à narrativa, tem vertentes que são próprias e vertentes que são irónicas, isto é, há artistas que partem da ideia de que o seu trabalho não deve fazer referência nenhuma a um processo narrativo de qualquer tipo, há outros artistas que fazem o contrário, centram o elo com o processo narrativo a partir da utilização de pinturas narrativas que são, ou paradoxais, ou inúteis, ou irrisórias, ou não têm nenhuma importância para a presença da obra ou para a relação com o espectador. Os dois exemplos mais curiosos desta segunda vertente vêm da Califórnia, onde há uma ligação particular com a memória do surrealismo. 
John Baldessari, artista californiano, em 1970, simbolicamente, queimou todos os quadros que tinha pintado entre 1953 e 1966 metendo as suas cinzas numa urna com um rótulo que dizia: “Aqui jaz toda a obra passada de John Baldessari”.
Bolos feitos com cinzas de "The Cremation Project" - John Baldessari

   Esta nova obra intitulada The Cremation Project" simbolizava um momento de corte com o passado. Baldessari utiliza na sua obra processos muito similares à memória do cinema, fazendo referências à ideia de montagem visual. Esses processos de montagem constroem frequentemente micro-narrativas paradoxais ou micro-narrativas sem sentido absolutamente nenhum desmontando o processo criativo.
"Conselhos para artistas que querem vender" - John Baldessari
Algumas das obras deste artista, são quadros que têm textos escritos com indicações diversas como. “Conselhos para artistas que querem vender. 1º -Pintar paisagens que não tenham elementos mórbidos”, etc. Outro artista da mesma altura, com um percurso ligeiramente diferente, mas que incide sobre o mesmo eixo de relação entre a narração e a utilização que invoca narração é Ed Rusha
A sua primeira obra é uma série de cartões-de-visita que mandou imprimir com o nome seguido da transcrição fonética do nome e por baixo a profissão. No início da década de 60 ele fez uma quantidade de trabalhos sobre suporte fotográfico ou utilizando “raports”. Um dos seus trabalhos foi “Royal type Writer test”, em que ele atira uma máquina de escrever da marca Royal dum carro em andamento à velocidade de 60milhas por hora, fotografando depois de parar os despojos da máquina espalhados na estrada. 
“Royal type Writer test” - Ed Rusha
   Há aqui uma utilização duma narrativa suficientemente irónica para ser sobre a destruição do processo de destruição. A destruição da máquina não tem outro significado senão o de desmontar a própria acção de anulação do processo de escrita ou do processo de narração. Outro trabalho deste autor consiste numa série de fotografias de estações de serviço de combustível que não têm nenhuma função, nem estética, nem narrativa, apenas a função de exemplificação da ideia de que qualquer realidade existe dum determinado ponto de vista.
"Estações de serviço" - Ed Rusha
   Esta ideia de ausência de narração acontece porque ela pede uma crítica à noção de história, (história política, história social, história da Arte). Em última instância, o processo de rotura que se vai acalentando durante os anos 70, necessita de utilizar também a utopia da falência do processo histórico, sobretudo o processo da história de Arte. Esta polémica não é nova, se fizermos um recuo até início do séc. XIX, o grande problema da instauração das novas expressões visuais do Romantismo alemão, foi precisamente terem que combater a pintura histórica da época. O Romantismo começa por tentar vencer a geral importância da pintura histórica que era a forma usual como o poder celebrava a sua perpetuação. Existe portanto um processo de rotura em relação à ideia de história construído duma utopia colocada com o Romantismo, que foi a descoberta da possibilidade da linguagem visual. A ideia de história como zona onde o poder e o Estado aplicam a sua possibilidade reprodutora é o alvo permanente das clivagens.
   Este processo de desmaterialização assume-se primeiro como “perca”, perca em favor da “ideia”, tida como crítica da narratividade e como utilização da narratividade no domínio da história. Isto não quer dizer que haja um divórcio ou afastamento entre a narração com a palavra e as artes visuais.
   Uma das formas mais eficazes de efectuar crítica é a de escrever. Portanto a escrita narrativa faz parte integrante dum processo criativo duma quantidade de artistas. Esta situação reside numa aproximação entre o universo da palavra e o universo da imagem. Na crítica à narratividade e na crítica à história existe como parte integrante deste processo uma aproximação entre o universo da palavra e o universo da imagem. Há uma expressão de Lucy Lippard que diz: “Em termos de processo criativo, a aproximação entre a palavra e a imagem significa a transformação do Ateliê num escritório”.
   Esta transformação é radical. O ateliê deixou de ser um campo de batalha com a tela ou com a matéria bruta, para passar a ser o campo do futuro do aperfeiçoamento intelectual.
   Esta geração de artistas dos anos 70 é a primeira que tem “mensagem” . São artistas que procuram continuar com um processo de investigação. A ideia de “projecto” é uma ideia que se associa à ideia de investigação, por vezes com muitas semelhanças com a investigação científica, qualidade fundamental para a solidificação desta ideia de  crítica associada à utilização de ironia, aproximação ao universo da palavra, utilização de micro-narrativas. Um dado fundamental para perceber estes processos foi a existência da 1ª grande exposição de Marcel Duchamp em 1966, da qual foi editado um catálogo, que na altura funcionou como um elo entre a nova geração de artistas e os críticos.
   No próprio universo da escrita crítica existe a ideia de que o processo criativo é um processo que tem como função delegar a relação com o espectador, com aquilo que vê. Essa ideia central podia ser definida na seguinte frase de Allan Kaprow que diz: “Quanto mais aberta e ambígua for a experiência oferecida, mais o espectador é forçado a depender das suas próprias percepções”. Ou seja, quanto mais disponível for de se demonstrar a possibilidade da obra , maior a responsabilidade do espectador. Existe subjacente a todo este processo uma ideia intensa de democracia interpretativa.
"18 Happenings em 6 partes" - Alan Kaprow
    A democracia interpretativa opõe-se assim a uma democracia representativa, a ideia é a de que qualquer espectador tem de suscitar interposta interpretação. Na democracia interpretativa, pelo contrário, o espectador é livre de estabelecer o seu próprio mapa ou o seu próprio código interpretativo. Existe aqui uma utopia da grande democracia interpretativa, mas a esta democracia interpretativa ou perceptiva corresponde também uma determinada democracia criativa.
   Ou seja, não pode haver um crescendo no sentido da possibilidade criativa, as duas caminham lado a lado. Onde é que encontramos manifestações mais intensas daquilo que podemos entender como essa democracia de criatividade? Em primeiro lugar no campo que liga à ideia ou utilização do corpo, por vários motivos. Porque o corpo é geral, todos temos um corpo, existe portanto neste aspecto uma garantia de democracia. Em segundo lugar porque o corpo tem toda a plasticidade possível, permitindo prescindir de outras componentes matéricas na produção da Obra. A linguagem manifesta-se no corpo, o corpo pode em si suscitar a presença de todas as possíveis zonas conflituais a partir de raciocínios que têm a sua raíz no campo psicológico, ou no campo político, ou na crítica, o corpo é um enorme campo de possibilidades. Esta ideia, encontramo-la mais cedo, não é uma invenção dos anos 60, embora hoje o possa parecer. Podemos verificar que os trabalhos sobre o corpo se iniciaram durante a 1ª Guerra Mundial, nos cabarets alemães. Com uma enorme liberdade da possibilidade de utilização da obscenidade em palco e da nudez temos um primeiro fluxo de presença do próprio corpo.
   Os cabarets têm como grande diferença a proximidade entre o espectador e aquele que representa. Essa proximidade chega ao ponto da promiscuidade. Há uma grande libertação do corpo que é intrínseca ao ambiente dos cabarets alemães do princípio do século. Este ambiente liga-se também às artes visuais e vem encontrar-se em Zurique no Cabaret Voltaire que iniciou as suas actividades em 1916. Neste local aconteceram inúmeras actividades ligadas à vanguarda musical e das artes plásticas provenientes do dadaísmo.
   Existem portanto antecedentes para essa importância do corpo em processos de rotura e a primeira razão era uma razão democrática, porque todos temos corpo. A 2ª razão tem a ver com a perspectiva de possibilidades que um trabalho sobre o corpo oferece na construção de estratégias que tenham a ver com estruturas e porque o corpo pode sempre ser utilizado como o passaporte para as referências a mecanismos de desejo ou de prazer, mas também a mecanismos de dor, de penitência ou de morte e portanto, quer no domínio da invocação destes sentimentos, quer no domínio da invocação da sexualidade, do desejo, ou do prazer, nestes dois domínios a zona onde o criador consegue uma ponte de contacto com o espectador de uma forma mais imediata e eficaz e com exemplificações que tenham a ver com a utilização do corpo. Se isto era válido em 1916, por exemplo as performances de Bedkin eram conhecidas pela grande obscenidade dos textos pela grande exposição sexual do discurso, pela referência permanente à doença, ou à interioridade do corpo, era um discurso permanentemente visceral sobre o informe do interior do corpo. É também a partir desse núcleo de referências que nos anos 60 nos E.U. se vai construir a primeira forma de relação intensa com o corpo. O corpo é utilizado como o sítio onde a presença do desejo, do prazer e da morte se manifestam com toda a intensidade. A comunicação através da presença corporal é fundamental. Mas o corpo é tomado não só como o corpo do actor ou do performer.
   Dentro do âmbito de democracia criativa e interpretativa, o corpo que está em causa não é só o do performer, daquele que desempenha, mas está em causa também o corpo do espectador e está também em causa a compreensão de que o momento em que a obra de arte comunica com o espectador, não é o momento em que o espectador conhece a obra, mas o momento em que este conhece o seu próprio corpo, isto é, começámos a falar de processos de perca a partir da ideia de desmaterialização, mas esta ideia tem consigo, inclui em si, uma referência que é a da corporalização. Se por um lado temos a matéria do objecto, por outro temos a corporalização da imagem e da vivência espacial.
   Este aspecto da corporalização, “fazer corpo, dar corpo”é muito importante para alguns autores, teóricos e críticos.
"Dedos" - John Coplans
   É curioso o caso do fotógrafo John Coplans que foi também Director de Museu, fundou a revista Art Forum que dirigiu de 1972 a 1977 e foi um crítico importante na década de 60. Ele fez  todo o seu percurso mental e também todo o seu percurso como fotógrafo, a partir da ideia de que a função da imagem é a auto consciência do corpo e da presença do corpo no espaço, por parte do espectador, com consequências ao nível das consciências política, estética, psicológica e ontológica do corpo por parte de quem vê.
   Portanto a função da arte é a de uma transferência de responsabilidades da presença do corpo por parte daquele que executa uma performance, aquele que executa o desempenho, para aquele cujo desempenho é estar presente e relacionar-se como espectador com uma obra qualquer.
   Esta transferência ou delegação de poderes é feita através de um dispositivo que é um dos instrumentos fundamentais, inventado na década de 40, que atinge a sua maior expressão nos anos 50, e que é o chamado “happening” (acontecimento). Em oposição à ideia de passividade e à ideia de história, aquilo que pode existir é um “acontecimento” o acontecimento dum corpo que “performa”, que desempenha ou executa e outro ou outros corpos que se relacionam com esse desempenho e com os factos gerados por esse desempenho.
   Existem muitos exemplos das primeiras “performances” ou “happenings” em torno de figuras como John Cage, Merce Cunningham numa ligação estreita com o panorama da dança que vem depois a associar-se com as artes visuais através da passagem pelo “Black Mountain College” a partir dos anos 50 e alguns autores como Robert Rauschenberg e Allan Kaprow , este último teve uma grande produção de textos principalmente nos anos 60 e na década de 70 ,sendo alguns de critica ao Formalismo.

“Texto de A.Kaprow sobre o Hapenning”

 “Formalismo : chicoteando um cavalo morto”                 (escrito em  59 e reescrito em 60/61) 

  «Um ponto de mudança crítico foi atingido na maior parte da área que é coberta pelo espaço da vanguarda e que eu acredito que é muito importante, mas que dá a responsabilidade e por vezes a tarefa desagradável de revermos alguns dos nossos pressupostos mais arreigados que dizem respeito à natureza das artes plásticas. Alguns trabalhos mais avançados que se encontram a ser feitos neste momento encontram-se também a fazer a sua tradicional identidade e ainda mais alguma coisa, atingindo com as suas implicações o seu próprio lugar no contemporâneo. Por um lado, olhando amplamente para a totalidade da arte moderna recente, as diferenças que antes eram tão claras entre artes gráficas e pintura, foram praticamente eliminadas. Singularmente as distinções entre pintura e colagem, entre colagem e construção, entre construção e escultura e entre algumas grandes construções e a arquitectura, foram abaladas. Esta continuidade é significativa e é o assunto crítico para o momento, porque desenhar e pintar e esculpir e as artes menores dependeram até agora em larga medida das condições que eram estabelecidas pela estrutura da casa.»




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